O
percurso é solitário. Faz frio. O silêncio
é quebrado apenas pelo canto dos primeiros pássaros
matinais e pelo ruído cadenciado dos meus passos sobre
o gelo fino e escorregadio que se formou depois da neve. Luzes
amareladas e translúcidas iluminam o caminho estreito entre
os pinheiros cobertos de branco. A paisagem lembra cartões
de Natal. Não dá para ver o final da curta travessia
que vai do hotel dos cosmonautas, o “Profilactorium”,
à entrada do núcleo de treinamento. São seis
horas da manhã. Ainda está escuro. Caminho rapidamente.
Os horários são apertados e, como de costume, a
agenda do dia será longa. Meus pensamentos são difusos
como o ar quente expirado que se mistura ao frio e se transforma
numa pequena nuvem branca. Lembro de pessoas, lugares, momentos
e eventos que antecederam minha chegada aqui: na “Cidade
das Estrelas”!
Localizada a 25 km de Moscou, a “Cidade das Estrelas”
é uma base militar que abriga o Centro de Treinamento de
Cosmonautas Yuri Gagarin. O próprio Yuri Gagarin foi treinado
aqui. A cada passo dentro desse lugar nos deparamos com alguma
parte da história do programa espacial e do desenvolvimento
das missões tripuladas nas últimas quatro décadas.
A arquitetura dos prédios retrata a filosofia soviética
da época da sua construção. Edifícios
residenciais com desenho repetitivo, um largo eixo monumental,
instalações geograficamente setorizadas, algumas
pequenas lojas, obras de arte, a estátua de Gagarin em
local de destaque, próxima à entrada do setor operacional.
O setor operacional é de acesso restrito. Muros altos e
sentinelas no portão principal garantem a segurança
dia e noite. Dentro desse setor, onde a grande maioria das atividades
de treinamento são desenvolvidas, existem três prédios
principais situados ao redor de um jardim central. Eles são
numerados a partir da esquerda de quem entra e segue pelo centro
da praça. Assim, o prédio 1 fica ao lado esquerdo
do visitante, o prédio 2 diretamente à sua frente
e o prédio 3 ao lado direito da praça.
No prédio 1 encontram-se os simuladores da espaçonave
Soyuz e da Estação Espacial, enquanto no prédio
2 são ministradas as aulas teóricas sobre seus sistemas.
Pesquisas médicas, consultas e exames são conduzidos
no prédio de número 3. Lá podem ser vistas
as famosas centrífugas para testes de alta carga “g”**
e as câmaras de grande altitude, mostradas inclusive nas
últimas reportagens da TV. Globo.
Além dessas construções, o setor operacional
também comporta duas cantinas, dois ginásios, centro
de visitantes, núcleo de fisioterapia e outras instalações
de suporte.
Tudo é organizado de forma sistemática com o objetivo
primário de viabilizar a atividade espacial tripulada.
A eficiência dessa organização é demonstrada
pelo sucesso das missões e projetos aqui desenvolvidos
e pelo número bastante reduzido de fatalidades durante
todo o tempo de operação desse programa.
A Chegada ao Centro
Há pouco mais de um mês, no dia 12 de outubro, decolei
de Houston, Texas / EUA, com destino à Rússia. O
vôo, com escala em Paris, partiu com uma hora de atraso.
Tempo suficiente para que eu perdesse a conexão para Moscou,
permanecendo por várias horas a circular pelo saguão
do aeroporto “Charles De Gaulle” enquanto esperava
pelo próximo embarque. Como início de treinamento,
ali já aprendi duas lições: primeiro, nunca
tenha uma conexão com menos de três horas em Paris;
segundo, no saguão do terminal B existem lojas mas não
existem assentos de espera. Eles ficam no portão de embarque,
depois da inspeção de segurança. Lá,
pode-se sentar calmamente, desde que não seja necessário
usar os banheiros, que ficam apenas no lado de fora do embarque,
no saguão B. Ou seja, a lógica da situação
operacional exige certo planejamento. Esteja preparado caso passe
por lá.
Atrasos e logísticas fisiológicas à parte,
cheguei a Moscou no dia 13 de outubro no começo da noite.
A diferença de horário é de nove horas. Isto
é, aqui estamos nove horas à frente de Houston e
cinco horas à frente do horário de Brasília.
Isso garante a insônia das três primeiras noites e
a justificativa pelos olhos vermelhos durante as primeiras aulas.
Passado o processo de imigração e de alfândega,
feliz pelas duas malas terem chegado no mesmo vôo, segui
para o desembarque. Lá encontrei um oficial do Centro de
Treinamento que me aguardava com uma folha de papel com meu nome
impresso. Pedi desculpas pelo atraso em inglês. Deveria
ter sido em francês! Ele não se importou. Disse que
não havia problemas, sorriu e começamos a caminhar
pacientemente em direção ao carro, enquanto me alertava
sobre o inverno russo que chegaria em breve. Ele parecia descansado,
apesar do tempo de espera. Não pude evitar olhar para os
assentos de espera do saguão do aeroporto. Havia vários.
No carro, a caminho da “Cidade das Estrelas” conheci
o trânsito de Moscou. Entendi porque as placas de propaganda
aqui podem ser lidas completamente, apesar do tamanho das palavras.
Até eu, que pouco ou nada sabia do alfabeto cirílico,
conseguia ler todas as placas, embora não entendesse quase
nenhuma delas.
Depois de duas horas e meia, chegamos ao Centro e seguimos para
o “Profilactorium”. Coloquei a bagagem no quarto 32,
agradeci e pedi desculpas, novamente em inglês, pelo atraso.
O jovem oficial entregou-me a programação do dia
seguinte e partiu. Fechei a porta, sentei no sofá da saleta
de entrada do apartamento para pensar por uns instantes. Tudo
parecia um tanto “misterioso” e “mágico”
naquele momento. Finalmente, depois de tantos anos de luta, a
realização da missão espacial estava há
apenas cinco meses. Por certo seria um tempo de trabalho intenso.
Muita coisa nova, novos sistemas, novos procedimentos, nova língua!
Respirei fundo, olhei em volta, sorri satisfeito e confiante,
levantei e comecei a desfazer as malas. Ali seria “meu lar”
pelos próximos meses, com muita atividade, estudos, testes,
e....
“Crachá
por favor”, diz o sentinela, em russo, enquanto minha mente
retorna rapidamente das lembranças e pensamentos que me
acompanharam nessa manhã fria.
Mostro
a identificação de Cosmonauta. Ele agradece e presta
continência. Entro no Setor Operacional. Olho para frente.
Continuo a caminhar, firme e disposto, para mais um dia de treinamento.
A neve cobre a estrada de branco, o caminho branco para o espaço!
** Aceleração da gravidade. Exemplo:
1 g = 9.8 m/s2 , essa é a aceleração vertical
que estamos normalmente submetidos na superfície do planeta
e nos faz ter “o peso medido” na balança usual.
Se estivéssemos submetidos a 5 “g”, isto é,
submetidos a 5 gravidades, o nosso peso medido para a mesma massa
seria 5 vezes maior