O CAMINHO PARA O ESPAÇO É BRANCO

O Centro de Treinamento de Cosmonautas Yuri Gagarin
Marcos Pontes
25/11/2005

O percurso é solitário. Faz frio. O silêncio é quebrado apenas pelo canto dos primeiros pássaros matinais e pelo ruído cadenciado dos meus passos sobre o gelo fino e escorregadio que se formou depois da neve. Luzes amareladas e translúcidas iluminam o caminho estreito entre os pinheiros cobertos de branco. A paisagem lembra cartões de Natal. Não dá para ver o final da curta travessia que vai do hotel dos cosmonautas, o “Profilactorium”, à entrada do núcleo de treinamento. São seis horas da manhã. Ainda está escuro. Caminho rapidamente. Os horários são apertados e, como de costume, a agenda do dia será longa. Meus pensamentos são difusos como o ar quente expirado que se mistura ao frio e se transforma numa pequena nuvem branca. Lembro de pessoas, lugares, momentos e eventos que antecederam minha chegada aqui: na “Cidade das Estrelas”!
Localizada a 25 km de Moscou, a “Cidade das Estrelas” é uma base militar que abriga o Centro de Treinamento de Cosmonautas Yuri Gagarin. O próprio Yuri Gagarin foi treinado aqui. A cada passo dentro desse lugar nos deparamos com alguma parte da história do programa espacial e do desenvolvimento das missões tripuladas nas últimas quatro décadas.
A arquitetura dos prédios retrata a filosofia soviética da época da sua construção. Edifícios residenciais com desenho repetitivo, um largo eixo monumental, instalações geograficamente setorizadas, algumas pequenas lojas, obras de arte, a estátua de Gagarin em local de destaque, próxima à entrada do setor operacional.
O setor operacional é de acesso restrito. Muros altos e sentinelas no portão principal garantem a segurança dia e noite. Dentro desse setor, onde a grande maioria das atividades de treinamento são desenvolvidas, existem três prédios principais situados ao redor de um jardim central. Eles são numerados a partir da esquerda de quem entra e segue pelo centro da praça. Assim, o prédio 1 fica ao lado esquerdo do visitante, o prédio 2 diretamente à sua frente e o prédio 3 ao lado direito da praça.
No prédio 1 encontram-se os simuladores da espaçonave Soyuz e da Estação Espacial, enquanto no prédio 2 são ministradas as aulas teóricas sobre seus sistemas. Pesquisas médicas, consultas e exames são conduzidos no prédio de número 3. Lá podem ser vistas as famosas centrífugas para testes de alta carga “g”** e as câmaras de grande altitude, mostradas inclusive nas últimas reportagens da TV. Globo.
Além dessas construções, o setor operacional também comporta duas cantinas, dois ginásios, centro de visitantes, núcleo de fisioterapia e outras instalações de suporte.
Tudo é organizado de forma sistemática com o objetivo primário de viabilizar a atividade espacial tripulada. A eficiência dessa organização é demonstrada pelo sucesso das missões e projetos aqui desenvolvidos e pelo número bastante reduzido de fatalidades durante todo o tempo de operação desse programa.

A Chegada ao Centro
Há pouco mais de um mês, no dia 12 de outubro, decolei de Houston, Texas / EUA, com destino à Rússia. O vôo, com escala em Paris, partiu com uma hora de atraso. Tempo suficiente para que eu perdesse a conexão para Moscou, permanecendo por várias horas a circular pelo saguão do aeroporto “Charles De Gaulle” enquanto esperava pelo próximo embarque. Como início de treinamento, ali já aprendi duas lições: primeiro, nunca tenha uma conexão com menos de três horas em Paris; segundo, no saguão do terminal B existem lojas mas não existem assentos de espera. Eles ficam no portão de embarque, depois da inspeção de segurança. Lá, pode-se sentar calmamente, desde que não seja necessário usar os banheiros, que ficam apenas no lado de fora do embarque, no saguão B. Ou seja, a lógica da situação operacional exige certo planejamento. Esteja preparado caso passe por lá.
Atrasos e logísticas fisiológicas à parte, cheguei a Moscou no dia 13 de outubro no começo da noite. A diferença de horário é de nove horas. Isto é, aqui estamos nove horas à frente de Houston e cinco horas à frente do horário de Brasília. Isso garante a insônia das três primeiras noites e a justificativa pelos olhos vermelhos durante as primeiras aulas. Passado o processo de imigração e de alfândega, feliz pelas duas malas terem chegado no mesmo vôo, segui para o desembarque. Lá encontrei um oficial do Centro de Treinamento que me aguardava com uma folha de papel com meu nome impresso. Pedi desculpas pelo atraso em inglês. Deveria ter sido em francês! Ele não se importou. Disse que não havia problemas, sorriu e começamos a caminhar pacientemente em direção ao carro, enquanto me alertava sobre o inverno russo que chegaria em breve. Ele parecia descansado, apesar do tempo de espera. Não pude evitar olhar para os assentos de espera do saguão do aeroporto. Havia vários.
No carro, a caminho da “Cidade das Estrelas” conheci o trânsito de Moscou. Entendi porque as placas de propaganda aqui podem ser lidas completamente, apesar do tamanho das palavras. Até eu, que pouco ou nada sabia do alfabeto cirílico, conseguia ler todas as placas, embora não entendesse quase nenhuma delas.
Depois de duas horas e meia, chegamos ao Centro e seguimos para o “Profilactorium”. Coloquei a bagagem no quarto 32, agradeci e pedi desculpas, novamente em inglês, pelo atraso. O jovem oficial entregou-me a programação do dia seguinte e partiu. Fechei a porta, sentei no sofá da saleta de entrada do apartamento para pensar por uns instantes. Tudo parecia um tanto “misterioso” e “mágico” naquele momento. Finalmente, depois de tantos anos de luta, a realização da missão espacial estava há apenas cinco meses. Por certo seria um tempo de trabalho intenso. Muita coisa nova, novos sistemas, novos procedimentos, nova língua! Respirei fundo, olhei em volta, sorri satisfeito e confiante, levantei e comecei a desfazer as malas. Ali seria “meu lar” pelos próximos meses, com muita atividade, estudos, testes, e....

“Crachá por favor”, diz o sentinela, em russo, enquanto minha mente retorna rapidamente das lembranças e pensamentos que me acompanharam nessa manhã fria.

Mostro a identificação de Cosmonauta. Ele agradece e presta continência. Entro no Setor Operacional. Olho para frente. Continuo a caminhar, firme e disposto, para mais um dia de treinamento. A neve cobre a estrada de branco, o caminho branco para o espaço!


** Aceleração da gravidade. Exemplo: 1 g = 9.8 m/s2 , essa é a aceleração vertical que estamos normalmente submetidos na superfície do planeta e nos faz ter “o peso medido” na balança usual. Se estivéssemos submetidos a 5 “g”, isto é, submetidos a 5 gravidades, o nosso peso medido para a mesma massa seria 5 vezes maior